quinta-feira, 5 de junho de 2008

Porque, felizmente ou não, ela vai embora...


ESCORRENDO

Antonio Prata

Aos 5 anos de idade o mundo é esmagadoramente mais forte do que a gente. (Aos 30 também, mas aprendemos umas manhas que, se não anulam a desproporção, ao menos disfarçam nossa pequenez).
A ignorância não é uma bênção, é uma condenação: compreender a origem dos nossos incômodos faz uma grande diferença. Mas como, com tão poucas palavras ao nosso dispor? Palavras são ferramentas que usamos para desmontar o mundo a remontá-lo dentro da nossa cabeça. Sem ferramentas precisas, ficamos a espanar parafusos com pontas de facas, a destruir porcas com alicates.
Com 2 anos, meu nariz escorria sem parar na sala de aula. Eu não sabia assoar, nem sequer sabia que existia isso: assoar. Apenas enxugava o que descia na manga do uniforme, conformado, até ficar com o nariz assado.
Lembro-me bem da sensação da meia sendo comida pela galocha enquanto eu andava. A cada passo, ela ia se engruvinhando mais e mais na frente do pé, faltando no calcanhar, e eu aceitava o infortúnio como se fosse uma praga rogada pelos deuses, uma sina. Não passava pela minha cabeça trocar de meia, desistir da galocha, pedir ajuda aos adultos: a vida era assim, não havia o que fazer.
Numas férias, meu pai apareceu antes do combinado para pegar minha irmã e eu na casa dos meus avós. Durante 400 quilômetros, falou que existem pessoas boas e pessoas más, que aconteciam coisas que a gente não conseguia entender, que mesmo as pessoas más podiam fazer coisas boas e as pessoas boas, coisas más. Já quase chegando em São Paulo, contou que nosso vizinho, de 6 anos, tinha levado um tiro.
Naquela noite, enquanto as crianças da rua brincavam – mais quietas do que o habitual –, um dos garotos disse: “Bem feito! Ele é muito chato”. Hoje, penso que pode ter sido sua maneira de lidar com uma realidade esmagadoramente mais forte do que ele.
Meu vizinho, felizmente, sobreviveu. Nossa ingenuidade é que não: ficou ali, estirada entre amendoeiras e paralelepípedos, sendo iluminada pela lâmpada intermitente de mercúrio, depois que todas as crianças voltaram para suas casas.

domingo, 1 de junho de 2008

É Pra Rir Ou Pra Chorar?

O Brasil proclamou sua independência, mas o filho do rei é que assumiu a gerência.
O povo sem estudo não dá muito palpite, e a nossa república é só pra elite.
(E quem faz greve o patrão ainda demite).
É pra rir ou pra chorar?
O Brasil aboliu a escravidão, mas o negro da senzala foi direto pra favela.
Virou um homem livre e foi pra prisão.
Só que a tal da liberdade não entrou lá na cela.
(E a discriminação ainda é verde e amarela).
É pra rir ou pra chorar?
O Brasil foi parar na mão dos militares, que calaram o povo no tempo da ditadura.
Torturaram e prenderam e mataram milhares, mas ninguém foi condenado pelos crimes de tortura.
(E tem até torturador lançando candidatura).
É pra ri ou pra chorar?
O Brasil conseguiu as eleições diretas, mas a gente que vota ainda é semi-analfabeta.
O Collor foi eleito e roubou até cansar.
O povo deu um jeito de cassar o marajá.
Mas ele não foi preso e falou que vai voltar!
É pra rir ou pra chorar?
O Brasil tem mais terra do que a china tem chinês, mas a terra tá na mão dos grandes latifundiários.
A reforma agrária, ninguém ainda fez.
Ainda bem que os sem-terra não são otários.
(E tudo que eles querem é direito a ter trabalho).
É pra rir ou pra chorar?
O Brasil tem miséria mas tem muito dinheiro, na mão de meia dúzia, no banco suíço.
O rico sobe na vida feito estrangeiro, e o pobre só sobe no elevador de serviço.
(E você aí fingindo que não tem nada com isso?)
É pra rir ou pra chorar?
O Brasil tem um povo gigante por natureza que ainda não percebe o tamanho dessa grandeza.
Sempre solidário no azar ou na sorte, um povo generoso, criativo e risonho.
Poderoso, e tem um coração batendo forte que põe fé no futuro do mesmo jeito que eu ponho.
E vai ter que ser independência ou morte. Um por todos, e todos por um sonho.
É pra rir ou pra chorar?
É pra rir ou pra voltar?
Pra seguir ou pra parar?
Pra cair ou levantar?
É pra rir ou pra chorar?
Pra sair ou pra ficar?
Pra ouvi ou pra falar?
Pra dormir ou pra sonhar?
É pra ver ou pra mostrar?
Aplaudir ou protestar?
Construir ou derrubar?
Repetir ou transformar?
É pra rir ou pra chorar?
Pra se unir ou separar?
Agredir ou agradar?
Pra torcer ou pra jogar?
Pra fazer ou pra comprar?
Pra vender ou pra alugar?
Pra jogar pra perder ou pra ganhar?
Dividir ou endividar?
Dividir ou individualizar?
É pra rir ou pra chorar?!
É Pra Rir Ou Pra Chorar?
(Gabriel O Pensador)